A divulgação da "Comunidade Monástica Comunhão e Misericórdia", e toda a história real de Santa Faustina e Jesus misericordioso.
Nunca vi um religioso tão franco e, nesse sentido, tão honesto quanto o
Papa Francisco. As declarações que ele tem dado mais recentemente confirmam
exatamente o diagnóstico que fiz sobre ele quando da sua eleição. O recado é
direto: a Igreja não tem que ficar insistindo sobre aborto, homossexualidade e
casamento (gay ou de divorciados) e preservativos. Ele diz também que já o
repreenderam, cobrando dele discursos sobre tais assuntos, mas que ele não toca
nesse campo porque como homem da Igreja ele já sabe o conteúdo da lição de casa, e justamente
por causa disso é necessário falar de outros assuntos.
A Igreja de Francisco retoma o caminho de convívio com o liberalismo
moderno: há questões de foro íntimo que devem ficar no campo de decisão de cada um. O padre não deve ficar no confessionário vinte e quatro
horas por dia. Que cada um pese consigo mesmo o quanto vale a letra das lições
dogmáticas da Igreja.
Após esse alerta crítico e autocrítico, ele aponta o ideal da Igreja: um grande hospital, uma enorme enfermaria em que o sacerdote
se faz de médico e vai ajudando e confortando cada um, sem perguntar sobre
questões íntimas e sem julgar e muito menos prejulgar. Eu diria: um hospital de
campanha, uma enfermaria gigantesca de tempos de guerra.
Para um filósofo
como eu, é difícil não dizer que o Papa está correto. Poderia dizer que o que
ele quer é retomar o caminho de São Paulo, e não o primeiro caminho de Pedro.
Quer uma religião missionária, que vá às pessoas. Mas prefiro não caminhar por
aí, por Paulo. Pois Paulo lembra um militarismo na função missionária que
Francisco está longe de cultivar. Seu ascetismo é franciscano, não propriamente
militar, ainda que ele seja na origem um jesuíta. Prefiro falar de Francisco
como quem quer uma Igreja para os estão desinteressadas em saber se há ou não
algum Deus. Quem são esses?
Meu amigo já
falecido, o filósofo norte-americano Richard Rorty, escreveu certa vez que há
filósofos que no passado se identificariam com o ateísmo, mas que agora
resolveram dizer que são pessoas de 'religiosidade desafinada' (uma expressão
de Max Weber). Isto é, são pessoas que estão para a religião como aquele de
ouvido desafinado está para a música (O futuro da religião. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2006, p. 48). Creio que posso ampliar isso, afirmando que há
pessoas assim para além dos que são chamados de “os intelectuais”. São
desinteressadas em Deus em um grau até muito mais alto que uma versão blasé da aposta
de Pascal. Não querem fazer como Pascal, que apostava em Deus justamente porque
nada perderia com isso, diante do não crente. Penso que hoje há aqueles que até
podem ter simpatias para com a religião, mas que não encontram sentido nem
mesmo nessa aposta, caso ela seja algo grave. Essas pessoas não necessariamente
são especiais ou não-especiais. Muito menos são pessoas que, por causa disso,
não possuem o que os conservadores americanos chamam “moral fiber” (fibra
moral). A Igreja de Francisco parece já estar se abrindo para tais pessoas.
Mas isso é só uma parte. A Igreja de Francisco quer mais. Ela quer se
abrir “para todos”. Francisco entende que todo mundo está machucado ou pode se
machucar e que a enfermaria em tempos de guerra, como no serviço internacional
da Cruz Vermelha, acolhe sem questionamentos constrangedores e muito menos sem
olhares de quem julga. Aliás, nisso Francisco foi pessoalíssimo. Perguntado
sobre o que achava dos gays, ele respondeu de modo inusitado: “quem sou eu para
julgar?” Uma resposta assim, tão fielmente apegada aos discursos de Jesus (que
os pastores odeiam, pois ameniza culpas ao invés de ampliá-las), é o que se
poderia colocar na porta dessa grande enfermaria. Um banner nesse estilo: “que entrem
aqui todos os feridos, seja lá por qual arma”.
Uma grande
enfermaria não é lugar de cura, mas de remendos, paliativos, recuperação, e não
raro, morte. Em geral, na guerra, é um lugar de conforto físico, moral e
espiritual. Ora, os homens deveriam ser proibidos de morrer com conforto ou de,
no desespero, deixar de receber conforto espiritual? Não!
Não estou falando
de um conforto em um sentido piegas! Babaquice não conforta, irrita. Espera-se
do padre da Igreja que ele saiba fazer mais coisa do que cantar com a Xuxa ou
falar palavras de auto-ajuda. Espera-se realmente que nas horas duras, quando
se está sangrando em uma tal enfermaria, alguém lá possa estancar o sangue e ao
mesmo tempo lhe proporcionar aquela deliciosa sensação de sintonia, como quando
se ia para a casa dos avós. E isso tendo tido ou não avós.
*Paulo Ghiraldelli
Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
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